Segunda-feira 1 de maio de 2018 | Presidente Prudente/SP

"Um Homem Foge do Espelho", por Rubens Shirassu

*Rubens Shirassu Jr

Em 21/02/2014 às 16:42

(Foto: Ilustração)

Era uma noite de verão quente e seca, como todo dia de semana, o movimento do bar é regular. Ulisses entra. Sentou-se à mesa do fundo, o velho trouxe a garrafa. Enquanto não acabasse o dinheiro (ficava tomando cerveja uma atrás da outra), o velho não deixava faltar cortesia. Ele trazia um talão de cheques no bolso e com os dedos colava os rótulos das garrafas na mesa.

Vislumbrava a paisagem noturna e dava um gole. Erguia numa careta o copo e espremendo os olhos engolia seco. Abrindo a vista, enxerga no relógio da parede as horas. Por trás do balcão, o velho apoiava o corpo em cima dos braços e colocava o queixo por cima das mãos. Ao lado, uma porção de petiscos em saquinhos com manchas esverdeadas de bolor. O velho esfregava no balcão um pano encardido de hora em hora. Quando Ulisses abriu a camisa e os braços como se fossem asas, deu a volta no balcão, contou as garrafas, chegou à mesa, pediu licença, encheu o copo e tirou os círculos úmidos naquele trapo.

Podia ouvir uma música em FM. Ulisses não gosta de bar sem rádio. Nunca tinha frequentado aquele lugar, seria um prazer a mais... Espreitava a paisagem noturna antes de emborcar outro trago. Adora o silêncio de poder estar só à mesa, sem o alvoroço de colegas aos gritos estridentes e risos impulsivos. O banheiro era uma alcova escura. A primeira entrada logo que se atravessa a porta. Cada vasilhame acabado, ali entrava, não sentia o odor familiar de desinfetante de pinho, saía rápido. Olhar de peixe, a face em transe, bebendo sem medida. O único bar sem a marcação dos garçons, costurando entre as mesas, sem a tática da gorjeta, para morder a língua e esvaziar o bolso.

Ulisses aprecia ficar no cheiro azul dos cigarros e no alarido das vozes. A casa, a esposa, abelhas pinicando a cabeça, quer o bar, colando nas mesas os rótulos das garrafas.

Naquele antro, é o dono da mesa, teria bebida em fartura e nem voz de mulher, que a língua é uma faca no coração: - “Não ponha álcool na boca, homem, pelo amor de Nosso Senhor. Essa é a água do Satanás, quando abrir os olhos estará arrastando no chão!” Com gesto de desconsolo, Ulisses não responde. A mesma cena se repete com a mãe toda a semana: - Por que você bebe, meu filho? Seu pai não morreu do coração. Sem tremer a agulha de crochê, a doce velhinha murmura a canção de ninar para o seu menino: - Seu pai cachorro de rua e ordinário, se matou com um tiro na boca. No quarto de hotel, ao lado daquela vagabunda.

O medo jamais o habitara, pelas revelações malditas da esposa. Assim, o bar é uma estrela guia, um sopro de vida. Sem regras, sem limitações, sem jogo e, principalmente, não tinha espelho. Ali se sentia livre.

Estava na hora de fechar, o velho ergueu o queixo, o peito do balcão, parou de rabiscar um caderno brochura amarelo, colocou a caneta na orelha e, sem olhar para as pessoas, somou o caixa. O homem levantou-se, contornou devagar por entre sua mesa, assim não fosse hora de sair do canto. Tentou desviar os olhos do relógio na parede. O velho retirou do corpo, o guarda-pó sujo e, bruscamente, desliga o rádio.

Pela rápida passagem das horas, por um triz, Ulisses é feliz no bar. É hora de ir para casa: a mão treme ao erguer o último copo. Parecia acordar após um grande descanso, olhos semicerrados. Foi pagar a conta com quem perdeu o último ônibus. Pelo gosto de caqui verde na boca, soube que a casa era o calabouço. Ele soltou o primeiro botão da camisa, a dor igual a um grão de sal na garganta. Colou com a baba os rótulos na mesa, os olhos vermelhos de tanto cortar.

Sai toda gente, cada uma com suas asas das fantasias, como vampiros da noite. À sombra dos postes, cambaleia na avenida de asfalto. Um cão uiva para a lua, perdido entre as construções de tijolo, muros e grades altas em forma de lança, da selva sanguinária.

Ulisses perdeu a guia das graças na travessia do mar de concreto. Ouve apenas o canto das sereias mutantes de néon nos labirintos e becos. Solitário cambaleia pela rua escura. Olha o corredor polonês de mocinhas, montadas de peruca loira, botinha preta e com a língua vermelha dardejante. Por mais que se enverede, algum timoneiro dos bêbados o guia a mudar sua rota de navegação.

A cada passo, Ulisses sentia os pés como num abismo de areia movediça. São 22 horas. Por estar bêbado, não podia andar a noite inteira. Os pés não suportavam o peso de chumbo. Era hora de ir para casa. As pessoas foram embora. Cospe na sarjeta a saliva pegajosa com sabor de caqui verde, o fio espumante no canto da boca: - Já tomei a cota de hoje. Estou mais do que certo, vou esquecer o dia.

Não podia olhar a fonte luminosa - no fundo azedo das entranhas floresce o cacto vermelho: Ter laços com alguma pessoa ou coisa, tomar o café com vidro moído, saborear o bolo com veneno de rato que lhe traz a sogra na poltrona da sala, a noiva tecerá com as mãos um bordado e, aos domingos, as pessoas na cozinha falam em subir no topo da colina verde... até que o carretel de costura não role dos dedos e a cabeça tombe para sempre...

Sentado na borda, distrai-se o Ulisses a ouvir lamúria na escuridão. Assovia a música que brota nos postes. Há muitas luas, os malditos olhos brancos sempre acesos nos postes. O homem de costas para o espelho d´água na fonte.

*Rubens Shirassu Júnior é escritor
 

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