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"Marginais, profissionais e burocracia", por Rubens Shirassu

*Rubens Shirassu Júnior

Em 24/09/2015 às 08:05

Os artistas marginais de hoje não são mais combativos “rebeldes com causa” como nos anos 50-60, mas os rejeitados pelos sistemas por falta de sincronização com os discursos oficiais

(Foto: Ilustração)

No começo do século 19, o mecenato, que fora tradição desde a Idade Média, mas principalmente da Renascença até o século 18, deixa de existir na forma conhecida. Os artistas, escritores e filósofos perdem, assim, a posição de agregados oficiais das cortes, o que não deixava de ser uma primitiva profissionalização. Muda então o estatuto daqueles que lidam com o fazer artístico.

Muitos conseguem mais autonomia vendendo diretamente suas obras, mas a exclusão social atinge um grande número, que passa a ser visto como diletante ou marginal.

Diletantes, como os aristocratas ou grandes burgueses, fazendo sua arte ao mesmo tempo em que exercem outras atividades, como juristas, soldados, diplomatas ou simplesmente “dandys”, frequentando a alta sociedade; ou marginais, mendigos, ladrões como tinham sido François Villon, Caravaggio, Restif de la Bretonne e como foram mais tarde Arthur Rimbaud, Paul Verlaine e tantos outros.

No século 19, ao mesmo tempo em que se organizam as instituições de arte (academias, museus, conservatórios – muitos fundados em séculos anteriores), músicos, pintores e poetas não conseguem se integrar às instituições ou à sociedade. Diletantes e marginais, diríamos hoje (significando não profissionais), como Shelley, Kleist, Emily Bronte... e todos os outros, de Leon Tolstoi a Van Gogh e Modigliani, ricos, nobres ou miseráveis, mas certamente não profissionais.

Os artistas não são gente fácil de catalogar, além da constatação de um determinado fazer a que se convencionou chamar arte. Bons ou maus, com caráter ou sem caráter, herói ou traidores, grandes senhores ou bandidos, Thomas Mann, Arthur Rimbaud, Lautréamont, Marcel Proust, Jean Genet, Céline, André Gide, James Joyce, Scott Fitzgerald, Nathaniel West, Lewis Carrol e também todos os autores de um só livro... e mais Sílvia Plath, Florbela Espanca, Soutine, Modigliani, Egon Schiele ou Pollock, poucos poderão ser definidos como profissionais.

Na terceira década do século 20, o desenvolvimento do capitalismo, a criação de um mercado de arte, a importância que tomou a imprensa, a formação universitária de muitos artistas criam um sentido de profissionalização.

Mas, se o esforço visando ao bom desempenho de uma tarefa pode caracterizar o “correto profissional”, o que irá mesmo defini-lo como profissional será o pagamento. “Profissional” é uma categoria que se refere, em primeiro lugar, ao trabalho pago. Depois, à qualidade desse trabalho. É possível, certamente, ser um bom profissional e um artista medíocre.

Lá pelo fim dos anos 20 e durante os 30 e 40 surgem sindicatos de artistas, reforçando a ideia de profissionalização da arte. Nos anos 60 o conceito de “obra aberta” procura tornar claro que para a total realização de uma obra é preciso um espectador. Ele a irá entender e lhe acrescentará significados.

Podemos adaptar a frase ao espectador de um quadro ou uma escultura. Os anos 60 e 70 são os anos dos críticos muito mais que dos artistas. A eles cabe dar sentido às obras, fazer e desfazer reputações e sinalizar o terreno para o mercado. A crítica de arte tem se sustentado em critérios ideológicos a respeito da arte e irá escolher artistas para demonstrar a verdade desses critérios.

Desde a década de 1990 a crença nas ideologias entra em decadência. Entre elas, qualquer pressuposto absolutista em relação à arte. Jornais e revistas mostram-se bem menos interessados em ceder espaço à crítica convencional.

Alguns fazem de suas páginas um bunker em defesa de suas crenças artísticas. Mas, o retorno é pequeno. Chega assim a hora e a vez do montador de exposições. A crítica sustentará a tradicional divisão trabalho intelectual-trabalho manual, ou racionalidade-intuição, próprios do dualismo cultural do Ocidente, assim como as outras divisões dia-noite, bem-mal, masculino-feminino, natureza-cultura, ser-nada, etc.

É curioso observar, tanto os artistas quanto as mulheres são mitificados nesta cultura, contanto que não ultrapassem o espaço que lhes é conferido, aquele da intuição, considerada importante, mas sob a tutela da poderosa Razão. Hoje, artistas e críticos tendem (se possível) a se profissionalizar, mas continuam separados, mantendo sua área específica. Ao artista cabe realizar a obra. Ao crítico conferir-lhe sentido.

Já o montador de exposições, profissional e até especialista que é, propõe-se a trabalhar diretamente com o artista, organizando a apresentação das obras. O que tem acontecido é que o montador escolherá a temática da mostra, selecionará os participantes, enfim, usará as obras como “matéria” que irá “informar”, mantendo assim, basicamente, a divisão da filosofia clássica.

O montador de exposições é, em tese, uma figura democrática, participando com o artista e o espectador do processo de apresentação/interpretação artística. Seria uma espécie de metteur en scene, trabalhando com seus atores e técnicos. Mas, pode transformar-se num tirano, espécie de tardio Diaghiliev, dirigindo a chicote seu ballet russe.

Se a profissionalização de artistas, críticos e montadores traz um higiênico rigor, muitas vezes positivo, ameaça, entretanto, com a burocratização, ponto final de qualquer criatividade. É aí que, mais uma vez, encontramos os artistas marginais.

Às margens, parece, são constantes em qualquer sistema, artístico ou não. Diz a historiadora Barbara Tuchman, em Um Espelho Distante: “Apesar de todo seu predomínio, não houve um só instante em que a Igreja não houvesse encontrado a resistência da marginalidade e dissensão em algum lugar. (...) Os que precisavam de conforto espiritual foram buscá-lo, cada vez mais, fora da Igreja, nas seitas místicas”.

Os artistas marginais de hoje não são mais combativos “rebeldes com causa” como nos anos 50-60, mas principalmente aqueles que os sistemas não integram por não estarem sincronizados com os diversos discursos oficiais, que são fechados e excludentes.

Para esses sistemas, nem se trata mais de saber quem está de fora e, sim, proteger-se daqueles que apesar de tudo poderiam forçar uma entrada. É hoje possível sabemos, derrubar muros e ameaçar a pureza interna. Existem afrodescendentes, excluídos e mulheres terceiro-mundistas pressionando, ou que já estão dentro. Existem discursos artísticos não conformes. Existe no pensamento atual uma tendência pluralista. E existe, cada vez mais, gente que, nas margens, diz e faz coisas...

 *Rubens Shirassu Júnior é escritor
 

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