Segunda-feira 1 de maio de 2018 | Presidente Prudente/SP

"Imagens estilhaçadas do tempo", por Rubens Shirassu

*Rubens Shirassu Júnior

Em 22/04/2016 às 17:08

(Foto: Arquivo)

Sem o álibi da censura e do fechamento repressivo que a geração 70 experimentou, a literatura das décadas de 80 e 90, a depender da conjunção dos astros, também tende a se repensar. Por enquanto, o que é absolutamente legítimo e merecido, experimentam-se as emoções e as surpresas que as brechas conquistadas da abertura do ex-presidente João Batista Figueiredo oferece. A história vai sendo revista com o desejo vivo de avaliar experiências, de discutir essa realidade - que teve lá seus momentos de prosa e poesia terríveis - do Brasil dos últimos anos.

Um traço parece dominar o panorama literário do momento: o desenvolvimento e, até mesmo, a inflação do conto. E os bons trabalhos de Luiz Vilela, Lygia Fagundes Telles, Márcia Denser, Nélida Pinon, Rubem Fonseca, José J. Veiga explodem como sendo a “nova ficção brasileira” por excelência. Uma manifestação de denúncia e de protesto, uma explosão de literatura geradora de poemas espontâneos, mal-acabados, irônicos, coloquiais, que falam do mundo imediato do próprio poeta, zombam da cultura oficial, escarnecem a própria literatura.

Dentro de uma faixa restrita, um grupo de Presidente Prudente jogava para o ar padrões estéticos estabelecidos, segue o perfil dos escritores transgressores, trata-se de criadores que adotavam um comportamento desviante. O País estava ingressando num novo período caracterizado pela modernização acelerada e pela crescente dependência ao capital monopolista internacional. Convivendo com a modernização econômica, era estimulado o ressurgimento ideológico de valores arcaicos da direita que assumira o poder.

A marginalidade é tomada não como saída alternativa, mas, sim, como ameaça ao sistema, como possibilidade de agressão e transgressão. A contestação é assumida conscientemente. O uso de tóxico e a bissexualidade, o comportamento exótico são vividos e sentidos como gestos perigosos, ilegais e, portanto, assumidos como mostram os livros “Morangos Mofados”, “Triângulo das Águas” e o romance “Onde Andará Dulce Veiga”, de Caio Fernando Abreu,  e “Tanto Faz”, de Reinaldo Moraes. Na poesia, “20 Poemas com Brócoli” e “Quizumba”, de Roberto Piva, “Jornal Dobrabil”, de Glauco Mattoso e “Uivo e Outros Poemas”, de Allen Ginsberg, traduzido por Claudio Willer, ambos de São Paulo.

Da pizzaria Tia Eva, na Avenida Coronel Marcondes, próxima a um clube social, o grafiteiro norte-americano John Howard cita frases de “Alice no País das Maravilhas”, de Lewis Carroll entrecortadas pelos refrãos da música “Another Brick in The Wall”, do grupo inglês Pink Floyd, com escala nos bares Avelino, na Rua Manoel Goulart, pois no inverno intenso de julho, o Manolo, o proprietário, fervia uma garrafa de vinho doce.

Às vezes, na sexta-feira, o pessoal se encontrava do bar da Unesp local em meio aos manifestos, declamações, depoimentos regados às altas doses de caipirinha, vodka, conhaque e cerveja, no Toca da Raposa, na rua Djalma Dutra, do Manuh Merselian e, também, no Clube da Esquina, sob a direção do Gilmar, na Avenida Washington Luiz, esquina com a Rua Mário Simões de Souza, onde promovia apresentações de instrumentistas, a exemplo de Mitio e Gutão Crepaldi, grupos musicais e cantores desconhecidos.

Jorge da Capadócia, professor de inglês, e Joaquim, o engenheiro civil, promovem a feira de livros nas escadas do extinto Cine Presidente, na Avenida Coronel José Soares Marcondes, em frente ao antigo bar Cinelândia. Os pedidos encomendados eram entregues no bar do Avelino: - “Desde que houvesse a consumação no estabelecimento!” - dizia o Manolo, dono do local e antigo garçon do bar Cruzeiro do Sul, no período de 1954 a 1966, famoso ponto de encontro de políticos, radialistas, jornalistas e comerciantes, na rua Joaquim Nabuco, esquina com a Tenente Nicolau Maffei, no centro de Presidente Prudente.

Por todo o país, vê-se a formação progressiva de grupos ligados aos movimentos de organizações de base da periferia, da frente de libertação do negro, da defesa da ecologia e a estruturação do movimento sindical nos principais estados da nação. Na administração Virgílio Tiezzi, cria-se o excelente projeto cultural “Corre Bairro”, de Hilton Nogueira (Tinho), da Secretaria da Cultura, ator, diretor de teatro, que começou a trabalhar em 1958, aqui na cidade e, testemunha ocular dos anos de chumbo do regime ditatorial, e Milton Saito, geógrafo e jornalista, atualmente residindo no Japão.

A trip dos boletins e fanzines alternativos, que canalizou a fatia mais perturbadora da poesia brasileira produzida nos anos 80 e 90, ganhava mais uma adesão. Trata-se de Soro, editado em Presidente Prudente por Rubens Shirassu Júnior e o professor Valter Rogério Nogueira de Almeida e membros da Casa do Poeta. Seu projeto estético e temático envolvia as questões mais inquietantes sobre o uso da linguagem como subversão de visões de mundo. Era um alternativo incomum, um OVNI de papel para leitores de beira-de-piscina, que certamente o achavam “chato” (este adjetivo, aliás, é o máximo de “crítica” alcançada por essas cabecinhas condicionadas pelos instantâneos da TV).

Soro, uma pequena obra-prima do que chamamos “jornal de autor”. Mostrava-se insubmisso à tirania do novidadeirismo dos suplementos de “estilo”, aqueles que capricham na embalagem para melhor empacotar o alienado e lhe definir o que pensar, ouvir, ler, assistir e vestir. Não havia novidades nas páginas de Soro. Buscava-se o novo, sempre atual. Seu ideário temático seguia a visada sincrônica formulada por Roman Jakobson, divulgada por Ezra Pound e trivializada pelos irmãos Augusto e Haroldo de Campos. Seu terceiro número trazia falhas no projeto gráfico, mas se revelava uma imprevisível caixa de surpresas. As páginas não estavam condenadas a meros suportes dos textos, mas se apresentavam como elementos estruturais dentro do jornal.

A plasticidade oferecia uma leitura descontraída. Havia uma descontinuidade na ordenação gráfica e visual das páginas. É como se estas, antes de se agregarem no boletim, fossem signos soltos e pintados, como grafites pichados nos muros da cidade. O efeito é sutil, o que acaba coincidindo com as referências xamânicas que perpassam todo o fanzine.

*Rubens Shirassu Júnior é escritor

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