Segunda-feira 1 de maio de 2018 | Presidente Prudente/SP

História em cacos, pelo escritor Rubens Shirassu

*Rubens Shirassu Júnior

Em 20/03/2018 às 17:50

Volumes são bonitos, com muitas gravuras e bela diagramação, em esforços gráficos de certas editoras

(Foto: Ilustração)

Acabo de examinar quatro livros dos gêneros relatos históricos, didáticos e de memória, com atenção e empenho. São bem diversos do Joaquim Silva do fim dos anos 30. Os volumes são bonitos, com muitas gravuras e bela diagramação, em esforços gráficos de certas editoras.

Procura-se avivar a linguagem de modo a despertar o aluno ou o pesquisador. A melhor qualidade dessa produção deve ser creditada aos cursos de História das Faculdades de Filosofia: se eles não deram ainda quanto se espera, no preparo de gente qualificada para desenvolver os estudos no país, com metodologia severa e pesquisa intensa, pelos menos elevaram consideravelmente o nível do ensino médio, chamado antes de segundo grau.

Antes de apontar faltas ou vícios destes livros quanto ao aspecto didático, impõe-se fazer o seu elogio. É difícil realizar trabalho do gênero. Autor culto na especialidade pode escrever de modo inadequado, pelo uso de técnica imprópria, com exposição fora do alcance do jovem, ainda sem intimidade com os temas ou a natureza do conhecimento histórico. Outro, menos culto ou erudito, pode ter êxito, por encontrar a forma de atingir o estudante, despertando-lhe a curiosidade e o gosto.

A leitura dos textos despertou-me admirações, pelos esforços de autores na busca da forma ideal, no que são secundados pelas editoras com a diagramação sedutora, ilustrações, mas carece de quadros sinóticos, questionários, leituras suplementares, com apelo até a história em quadrinhos, charadas ou palavras cruzadas. Não mais a exposição solene, mas a busca do objetivo, simples, atraente.

Nesse esforço, costumam comprometer o texto, com o sacrifício do conteúdo ou até a linguagem, quando o coloquial pode chegar à vulgaridade, o esquematismo à simplificação empobrecedora. Demais, a economia de palavras prejudica a exposição, no uso excessivo de figuras, de modo a contribuir para agravar o desinteresse pela leitura, já tão comprometida com os abusos do audiovisual, a obsessiva assistência de televisão, que induz à preguiça e debilita o raciocínio. Vê-se apenas, assimila-se o produto acabado, aceito passivamente, sem reflexão ou crítica. A impressão da leitura desses textos é a do labor meritório de encontrar o modo de comunicação. Se não é fácil, elogie-se o empenho de tais autores.

Tinham uma tarefa difícil e deram o que podiam. Confesso admiração por eles, mesmo alguns notoriamente fracos, pois só quem tentou algo sabe dos entraves quase insuperáveis. O certo, porém, posto de lado o desejo de ser compreendido, é que os resultados quase sempre deixam a desejar.

São observações feitas de leitura, não da experiência, tanto de um escritor, de mero colecionador de cartões e imagens antigas, ou professor que tivesse usado os livros com os alunos. Assim, não se veja, em quanto se disse, mais que uma opinião pessoal. É importante o exame do assunto, pois o nível médio pode ser decisivo para a aceitação ou a recusa da História.

A impressão geral de quanto se leu é a da falta de conhecimento maior da matéria. Os autores talvez sejam bons na didática da sala de aula, mas quase sempre têm precário domínio do assunto – há exceções, é claro. Só o conhecem em nível médio, distantes da ciência histórica de nosso tempo.

Parecem saber pouco da bibliografia. Insistem no anedótico, na cronologia rígida, multiplicando datas; têm apego excessivo a nomes, supondo e fazendo exposição demasiado factual, raramente superando a narrativa, sem exame reflexivo, na tentativa de compreensão ou interpretação do processo histórico, cuja realidade não é apreendida.

Falta-lhes, quase sempre, o senso da dinâmica, não percebem a trajetória em seus acidentes, como se a História fosse algo mecânico, quando ela é eminentemente viva. Perder o sentido de fluxo ou mudança é perder o essencial, fazendo esquema estático, negação da História.

Atendo-se ao acontecimento, deixam de lado o básico, que são os costumes, o cotidiano, as ideias e crenças, as paixões, as molas propulsoras do homem e das sociedades. Detêm-se nos eventos e estes são quase os políticos, no que a política tem de mais epidérmico – o mando, as guerras, entre as nações, esquecidos de que o essencial é o poder e este não está quase nunca no chefe aparente, mas em seus donos e manipuladores.

A linguagem nem sempre é respeitada. E menos esquemático, mas apela muito para os arrolamentos de suposta decoração – presidentes, governadores, prefeitos, vereadores, entre outras autoridades, pioneiros exploradores e vendedores de terras devolutas e complementando com os conhecidos “posseiros.”

Repetindo velha forma da pirâmide social, ufanista e colonialista, fala da fundação das cidades da região oeste do Estado de São Paulo, como se estes só existissem em função da iniciativa dos coronéis migrantes e apropriadores de terras alheias (grileiros).

Carece nestas publicações a narrativa em quadrinhos e de ilustrações de qualidade: sem figuras que parecem anjinhos ou santinhos, sem humanidade, com inaceitáveis retoques. Tem visão ufanista, no vocabulário, ocorrem alguns erros ao exaltar “as façanhas de nossos heróis pioneiros”, entre vários termos, como “bandeirante do século XX.” As ilustrações têm enfeites em excesso, em discutível colorido. A ordem dos capítulos tem coisas estranháveis.

O bom livro de História para estudantes e demais leitores não pode restringir-se ao conhecimento, por parte dos autores, do mero factual, em narrativa acrítica. Só quem conhece mais o processo das trajetórias nacionais ou sociais apreende a História no essencial.

E para tanto é necessário certo domínio interdisciplinar, uma vez que o social não se segmenta em história, economia, sociologia, antropologia, direito, religião, arte, ciência, mas é uma totalidade. O principal defeito desses livros é que seus autores não parecem ter esse entendimento. São de formação deficiente, sabem uma história apreendida em livros de divulgação. E, então, esboça-se esquema de idades – a exemplo dos termos Moderna e Contemporânea – tão superado, como se sabe.

Ele nada tem de universal e leva ao etnocentrismo europeu, pois é copiado de autores daquele continente. E se tem a história das civilizações desenvolvida em torno do mar Mediterrâneo; o resto é ignorado, ou visto como repercussão do expansionismo europeu. Negam-se as demais culturas, em processo pouco inteligente e dominador, fruto de um evolucionismo mal compreendido.

Ora, a moderna ciência social não admite mais o esquema que leva a discriminações e privilégios, injustos e poucos inteligentes, pois a etnologia ensina o significado de todas as culturas: elas são a resposta ao desafio de cada meio e cada tempo, válidas como respostas para sua afirmação.

A História, inteligentemente compreendida, é o domínio do relativo e, como tal, da tolerância, do entendimento entre os povos. É a melhor lição para a paz, para a harmonia entre as nações, fim das discriminações étnicas, de sexo, grupos sociais, comportamentos divergentes. Bem compreendida, tem função pedagógica superior. Ela e só ela pode inspirar a vida política nacional e internacional, hoje conturbadas com disputas surgidas de ambições e resultantes de falta de conhecimentos que a História dá, no culto de todos os valores humanos, respeitados e acatados quando compreendidos.

O livro didático pode contribuir decisivamente para esse estado ideal, que não é utópico, mas possível, conquanto a natureza do seu conhecimento seja de fato captada. Para tanto, estes livros podem contar e contam, se atingem sua forma justa, da qual estamos distanciados pelas suas notórias insuficiências. Já é tempo de cuidar de sua superação.

*Rubens Shirassu é escritor

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