Segunda-feira 1 de maio de 2018 | Presidente Prudente/SP

"A perda da aura", artigo de Rubens Shirassu Júnior

*Rubens Shirassu Júnior

Em 23/06/2016 às 10:06

Salon ( 1859 ) litografia de Honoré Daumier

(Foto: Reprodução)

Mário de Andrade dizia que o crítico era bom apesar do método. As chamadas questões de método não o enredavam mais do que o necessário, e embora tenha sido, mais do que ninguém, fino e, às vezes, até meio “leniniano” estrategista da luta literária e cultural entre nós, sempre andou meio alheio aos pontapés que, volta e meia, trocavam os homens da literatura e da crítica entre si.

Por exemplo, Afrânio Coutinho, crítico togadíssimo, reitor, o homem da divisa “letras para o desenvolvimento”, puxador do new criticism na universidade (“o que importa é o objeto, não o sujeito, a crítica é da esfera da ciência”), versus Álvaro Lins, homem de letras à francesa, embaixador,para quem a crítica era uma aventura da personalidade do crítico (a sua era flamante), e algo de fundo e feição sempre impressionista. Mário alheio. Não era com ele esse “TER literário”.

Ou em 1943, quando Oswald de Andrade andou se pegando com Antônio Cândido, cujo rigor crítico e dialética elegante puseram a nu as insuficiências da obra do autor de João Miramar (todo o grupo de Antônio Cândido recebeu então a carga do terrorismo verbal de Oswald, que passou a chamá-los de “chato-boys”), Mário de Andrade também não se mexeu.

Não era com ele, nem os bate-bocas nem as querelas em torno de scholars e impressionistas, togados e homens de letras, professores e jornalistas. Da crítica parecia que pedia apenas que não fosse esse “aqui jaz” dos livros, mas que fosse a inteligência das obras. Como ele próprio fez com O Ateneu, de Raul Pompéia, numa das mais completas, senão a mais, análises literárias da história da crítica brasileira.

Mário de Andrade, que continua meio patron da cultura brasileira, também aí tinha razão. Isso de método, se o objeto ou o sujeito, a obra ou a cabeça do crítico (essas coisas se dão à luz no ato e na aventura da leitura), se foi algum dia questão cerrada a dividir os críticos e ensaístas, hoje não é mais o ponto. Passada a catatonia estruturalista, essa sim um niilismo de cátedra, uma “nadificação das cátedras, e cursos de literatura, não há muita gente mais se batendo abertamente por essas coisas. Quanto às premissas e métodos, houve algo como um discreto “liberou geral”.

Barbárie

O fenômeno não inquieta pouca gente. Do lado acadêmico, os professores olham severos para as mutações porque passou a crítica literária entre nós, sobretudo nos anos 80: das três funções da crítica, análise, interpretação e julgamento, só restou a última. Mas a forma de produzir esse julgamento, reduzindo-se a uma apreciação sumária, sem um exame mais detido do texto, revela de modo brutal o gosto ou a ideologia do crítico, ou simplesmente o grupo de apoio a que pertence.

Sem mediações que relativizem a sua opinião pessoal, o jornalista acaba virando um agente da barbárie. Todo documento, como declara Walter Benjamin, estrategista também da luta cultural, pode ser tanto um documento de cultura como de barbárie. A área acadêmica, de um modo geral, não esconde o seu quê de terror e tremor diante da banalização da crítica e do amesquinhamento via resenha.

Vou pelo pessimismo abissal da Escola de Frankfurt para explicar a figura do crítico apenas como “fermentador da onda consumista”. A nossa época é ainda aquela a que se refere o pensador Theodor Adorno, “em que a indústria cultural transforma tudo em mercadoria, e o escritor e a literatura hibernam”.

Assim vejo na figura do resenhista um fator de excitação do efêmero. O crítico, esse que estabelece um diálogo constante com o passado, das obras umas com as outras, pois toda a literatura é copresença do que já foi escrito, inexistiria. Ou diante das fissurantes exigências de atualidade das editorias da cultura dos jornais e da redes de televisão hiberna.

Paulo Francis, leitor antigo e assíduo de Edmund Wilson (e, mais ainda de Lionel Trilling, da mesma geração do autor de Rumo a Estação Finlândia, e talvez melhor crítico do que ele), bate no ponto: “A crítica humanista, essa que vê e pensa a literatura como algo relacionado à vida dos indivíduos e ao conjunto da vida social, a crítica de Tristão de Athayde, ou Franklin de Oliveira, entre outros, é quase inexistente hoje no Brasil”.

Embora como representantes dessa crítica de visão de mundo humanista ele só veja hoje dois nomes no país, Wilson Martins (“cuja História da Inteligência Brasileira é fonte irresistível de referência”) e José Onofre, fica com ela. Jamais com a crítica acadêmica: “A crítica universitária, especializada, não me interessa em nada. Os acadêmicos são insuportáveis. Quando se consegue desbastar, furar aquela metodologia toda que eles nos impõem nos seus artigos, deparamos com o mais absoluto óbvio, com a completa ausência de uma ideia, de uma percepção. O Folhetim, suplemento extinto de um jornal paulista, é um exemplo disso. É a coisa mais ilegível que conheço”.

Para Francis, a única crítica que merece existir é aquela que aprofunda, reflete e elabora isso de que “a literatura sempre viveu, o entrelaçamento dramático de pessoas em situação de opressão tentando se libertar”. Se ele recusa a resenha, por suas conhecidas limitações, também não fica com o tratado acadêmico: “A literatura, e a crítica consequentemente, tem que estar relacionada com a sociedade, com a vida das pessoas, e a crítica especializada não tem nada disso. A USP é a coisa mais irrelacionada que há”.

Poder de espanto

Mesmo áreas interessadas em princípio na maior agilidade das formas de divulgação do livro, como os editores, guardam suas distâncias com relação às formas hoje predominantes nas páginas de cultura dos jornais, revistas e da internet. Num mercado editorial no estágio do nosso, com o crescimento dos inéditos ou novos autores, é necessário que haja também um serviço jornalístico mesmo, com informações sobre livros, autores, estilos. Isso para um público mais virgem. De outro lado, separadas as coisas, é necessário que haja propriamente mais crítica literária, até com uma feição mais ensaística. Como gênero literário. O problema é o hibridismo superficial entre a informação mal dada e a crítica mal realizada.

Vejo uma orientação recente, no sentido de instituir formas mais antenadas, cosmopolitas, de resenha, que faça as conexões internacionais, transcendendo o regionalismo, a base democrática da literatura.

Feitas as contas, melhor do que jogar pela janela a água nem sempre muito clara das resenhas, pois pode haver inclusive vida lá dentro seja tentar deslocar os limites. Mais do que suspirar pela cabeça vienense de Otto Maria Carpeaux, pelas bravatas de Álvaro Lins, talvez seja melhor tentar entender as formas culturais que, neste momento da história e do processo cultural do país (a economia assim, a luta de classes assado, a internacionalização da indústria da cultura, etc.) vieram substituir as formas, digamos, imponentes de crítica literária. Não é essa afinal a tarefa essencial, primeira, da crítica: tentar discernir as formas na história e a história nas formas?

A figura do crítico literário é anterior à divisão entre universidade e imprensa. O crítico como instituição, como universidade individual, é anterior a isso. Os críticos como Carpeaux, Álvaro Lins, e outros. Esse lugar ocupado pelo crítico como mediador universal, como guardião da literatura, desapareceu, na medida em que a própria literatura também perdeu o papel central que ocupava na cultura, em virtude da fragmentação da sociedade e da produção cultural. Como o poeta de Baudelaire, que vê a sua aura cair no chão ao atravessar a rua, também, o crítico parece ter perdido a sua.

As formas novas, que têm surgido a partir dessa destituição da figura do crítico como “universidade individual”, devem ser vistas com o máximo de consciência e capacidade crítica possível, mas também sem nostalgia. Sejamos mais apocalípticos do que integrados, ou o contrário, há algo de fato cultural consumado aí. Se é verdade que a crítica perdeu a sua “aura”, caída no chão por causa dos deslocamentos da indústria cultural, isso não importa tanto. Importa que não perca o que é fundamental: essa capacidade de espanto diante das obras.

*Rubens Shirassu Júnior é escritor

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