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"A metamorfose do Pai", por Rubens Shirassu Jr

*Rubens Shirassu Jr

Em 11/07/2015 às 09:50

(Foto: Ilustração)

Max Brod acertou ao incluir a Carta ao Pai entre as obras literárias de Franz Kafka. Nela, presentes o mesmo clima opressivo que caracteriza sua obra em geral e o mesmo tom metálico sustentado pelo enunciado em que a compulsão organiza um universo onde se acumulam destroços, sem falar nos temas como a culpa, o autoritarismo, a perseguição, também aqui presentes.

É verdade que o texto apresenta a peculiaridade de ser uma carta. Nela, Kafka faz uma avaliação de sua vida inteira marcada, segundo ele, pelo jugo tirânico da figura paterna. Hermann Kafka, comerciante judeu, com seu egoísmo bruto, sua mentalidade arrivista e sua negligente vulgaridade, teve uma ampla – ainda que involuntária – parcela de responsabilidade na construção da autoimagem de fracassado que Kafka deve ter carregado ao longo da vida.

Convém realçar, contudo, a carta lida com registros de memória e do que Kafka se lembra é altamente revelador, não é mais revelador do que aquilo que ele esquece. Nesse caso, a imagem do pai é sempre uma imagem parcial e facciosa captada pelo filho intimidado e hipersensível, numa rede de relações familiares, onde as expectativas de pai e filho se frustram: o pai, certamente, queria ter tido um filho forte e corajoso, e o filho um pai amoroso e compreensivo.

À certa altura da carta, Kafka atribui ao convívio atritado entre ambos o resultado dele ter desaprendido a falar, em contrapartida ao pai que era eloquente e ótimo orador: “Na sua presença... adquiri um modo de falar entrecortado, gaguejante, para você também isso era demais, finalmente silenciei, a princípio talvez por teimosia, mais tarde porque já não podia pensar nem falar” .

Se é verdade que, do ponto de vista dos conteúdos, a carta trata da opressão do pai que cala o filho, a própria carta é um texto onde o filho cala o pai. Quem tem o domínio da palavra, do juízo, da argumentação, das ponderações, é o filho que, inclusive, usa do artifício de selecionar e citar as falas do pai nos exatos momentos em que elas servem para corroborar um argumento seu.

Desse modo, as falas citadas atribuídas ao pai não chegam a instituir um interlocutor no interior da carta, sendo tragadas pela força argumentativa e de composição de um discurso que ao se referir ao outro, estrategicamente o omite.

Assim, a última palavra é a do filho que pretendeu enredar e paralisar a violência mítica do “Pai”, metamorfoseando nestas palavras: “Às vezes imagino um mapa-mundi aberto e você estendido transversalmente sobre ele. Para mim, então, é como se entrassem em consideração apenas as regiões que você não cobre ou que não estão ao seu alcance. De acordo com a imagem que tenho do seu tamanho, essas regiões não são muitas nem muito consoladoras...”.

Mas, Kafka, ao rever, resgatar, refazer a própria história ou seja, em última análise, ao se autoengendrar, ser, enfim, seu próprio pai, apodera-se de seu passado, seu presente e, porque percebeu que está falando de si mesmo. Depois de imaginar que resposta o pai lhe daria à “Carta”, apresenta-lhe uma tréplica final, objetivando que aquela réplica tinha sido escrita por ele mesmo, Kafka.

Afinal, quem e de quem ele falava, senão a ele e dele mesmo, Kafka? O pai real ou o imaginário, o filho real ou o imaginário, não importa, são formas de eu me resgatar a mim mesmo – e, por identificação ou por intuição, os publicitários sabem disso muito bem: quando querem mexer com nossas emoções, falam de pai e filho aos anúncios, cutucando nossos núcleos neuróticos.

Por isso, nem vivendo, nem escrevendo chegaremos a responder à pergunta (O que é um pai?), por mais que possamos caminhar na recriação libertadora da relação pai-filho, só nos resta, porém, usar a literatura como um meio para expressar o desequilíbrio causado pela sociedade opressiva em que vivemos.

*Rubens Shirassu Jr é escritor

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