Segunda-feira 1 de maio de 2018 | Presidente Prudente/SP

"O ritmo no relógio de cada um", por Shirassu

*Rubens Shirassu

Em 12/11/2015 às 14:57

Um relógio-despertador, que mexe no metabolismo, no biológico

(Foto: Ilustração/Rubens Shirassu)

Na manhã de domingo, uma música leve acordou o homem com um som diferente no seu relógio-despertador. Influenciado pelo horário de verão, como se diz. Tal qual peça imposta na temporada. Um breve estribilho, assim como um pedaço das Quatro Estações de Vivaldi.

Mas o engraçado é que, quando a musiquinha toca, o homem desperta mesmo que esteja desmaiado num sono profundo. Ninguém sabe direito se o segredo está na música ou no jeito como o relógio a toca. Os sons se repetem várias vezes, até com insistência.

As mesmas notas. Porém, dando a impressão de que a melodia se modifica à medida que o homem fica mais acordado. Não irrita, não desgasta, não cansa e nem provoca. Apenas desperta. Mas, desperta para valer.

Depois que o homem ouve a música não tem mais jeito de dormir. O relógio acorda a pessoa sem agredir, sem querer impor seu próprio horário. A musiquinha está lá, cumprindo a sua obrigação, no horário que o homem marcou. Para chegar a esse ponto de eficiência o relógio precisa, naturalmente, três dias de ajuste. Não parou um minuto. Na hora exata, nem antes nem depois, ele soltou a engrenagem da pequena orquestra invisível feita de pingos de sons, exatamente para levantar quem não pode mais ficar dormindo.

Fico olhando para esse relógio com mecanismo de cordas, supostamente simples que quebra o silêncio da manhã com mansa discrição e, ao mesmo tempo, com suprema pontualidade. A primeira tendência é não levar o relógio a sério. Dormir. Continuar dormindo. Puxar a trava. Mas, o mostrador é sincero: está na hora.

A sinceridade do relógio comove, ela é parte de seu trabalho silencioso preparando o momento do despertar: Olhe, cara, você pediu que eu o acordasse às sete da matina. Aqui estou, no meu ofício. Ouça como toco a musiquinha. Viro para o outro lado. O relógio não desiste. Ele repete o estribilho.

Com a mesma paciência, a mesma certeza da primeira vez. O relógio tem absoluta certeza do que está fazendo. O relógio não engana. O relógio conhece as coisas. Ele viu passar o último bêbado, o mendigo, o tático móvel em ronda, a mulher estropiada pedindo uns trocos na rodoviária, o taxista ouvindo o rádio companheiro da madrugada: ele vê passar as pessoas que caminham nas trevas ou sob as luzes artificiais da noite.

O relógio vê tudo. Vive cada segundo. Não desperdiça o tempo. Ele conhece as coisas. Ele conhece as pessoas. O relógio sabe o quanto envelhecemos de ontem para hoje. O relógio velou nosso sono. O relógio ficou atento ao nosso lado o tempo todo, enquanto dormíamos. E agora toca sua musiquinha. Todos temos um relógio dentro de nós. Um relógio-despertador, que mexe no metabolismo, no biológico.

Por comodismo, por incômodo, por preguiça, por desprezo, por falta de confiança, porque não queremos nada com nada, para não nos aborrecer, para não abrir os olhos – muitas vezes travamos o relógio. Cortamos a musiquinha pela metade. Fingimos não ouvir. Desligamos. Isso quando não retiramos o relógio de circulação, encerrando-o num velho móvel sem utilidade.

Cada um tem um relógio-despertador dentro de si. Sem violência, na maior paz, sem atropelo, na hora exata, até com delicadeza, o relógio nos desperta. A mensagem do relógio: a paciente mensagem da não-violência. A paciente mensagem de que temos pouco tempo - cada vez menos tempo.

A paciente mensagem de que não se pode virar para o lado, fingir-se de surdo, indiferente. A paciente mensagem da persistência. O despertador dentro de cada um. Quem não ouve mais a musiquinha - está morto e não sabe.

*Rubens Shirassu é escritor

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